História de leitor

Minha mãe contava sua história triste de filha mais velha, nove irmãos, vida sofrida de família com poucos recursos. Ela, menina, já responsável pelos afazeres domésticos, pelos irmãos menores, pela organização da casa. Frequentava o grupo escolar - meu avô fazia questão que estudassem - tímida, franzina, recém chegada àquela cidadezinha do interior - amigos não os tinha ainda.

Deslumbrou-se com a biblioteca da escola estadual, acabou se apaixonando pelas obras de Monteiro Lobato, toda ela lida na hora do recreio, no silêncio morno daquele espaço sagrado em que podia mergulhar no reino das águas claras, caminhar pela mata do sítio: sacis, fadas, mula-sem-cabeça, assombrações... Era capaz de sentir o cheiro bom dos quitutes de tia Nastácia, via-se um pouco Emília, desejava poder ser criança e mais, neta de Dona Benta. Conversava com Narizinho e se atrevia a viver as aventuras de Pedrinho, a sabedoria do Visconde.

Depois vieram os clássicos de nossa literatura que ela retirava na biblioteca e levava escondidos para casa. Os tempos eram difíceis e os deveres de filha mais velha certamente tomavam-lhe as tardes. Mesmo assim, traçava um plano e estrategicamente fugia à rotina de obrigações: escondia-se embaixo da cama de molas, na quase escuridão do quarto, o suor escorrendo-lhe pelo corpo: mistura de medo e alegria. Abria o livro e entregava-se ao prazer da leitura: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Raul Pompéia, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Jorge Amado...

De repente, apenas ouvia seu nome pronunciado num grito rouco que há muito a procurava. Contra sua vontade, fechava o livro bem junto ao peito, às vezes suspirava, deixava o esconderijo e cuidava de guardar o tesouro. “Muito bem guardado” – dizia para si mesma. E retomava silenciosa a rotina de obrigações.

Não muito mais tarde, a aventura rendeu-lhe problemas de visão “Eu tinha que forçar os olhos na penumbra do quarto fechado”- confessou-me, num meio sorriso maroto, para ela, marca de recompensa: caminho sem volta pelo universo literário. E melhor ainda: viagem secreta na qual nunca foi pega.

Continuou lendo, sempre e muito. Queria ter sido professora. Não foi. Precisou trabalhar. Casou-se depois. Enviuvou ainda moça. Mas comprou, em prestações, a coleção completa dos livros infantis de Monteiro Lobato. E apresentou para nós.

Meu irmão e eu (sequer sabíamos ler!) viajávamos todas as noites através das palavras, da alegria e daquele brilho incontido no olhar de minha mãe que, com certeza, voltava-se menina para o tempo da biblioteca do grupo escolar, do esconderijo pouco iluminado e quente...

Também nos apaixonamos pela leitura, pela literatura, pela música e pela arte. E foi assim que aquela história triste e linda invadiu nossas vidas. Para sempre.

Fabíola Maria Giovannetti Marques
Professora e Coordenadora de Língua Portuguesa
Colégio Marista de Ribeirão Preto

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